Elisa de Magalhães* A farmácia performática: corpo e anticorpo no ato performativo The performable pharmacy: body and antibody in the performative act Este artigo discorre sobre o ato performativo como desconstrução permanente de si, como relação conflituosa produtora de alteridades, entre elas, a alteridade radical, o todo outro, que é a cisão do corpo em íntimo e êxtimo, tão estranhos um para o outro que não podem se comunicar e passam a surgir como corpo e anticorpo. Assim, o espectador só pode experienciar a performance se também performar, desconstruir-se, experimentar-se como infinito no infinito do outro. A atuação de Jean Desailly e Françoise Dorléac em cenas do filme La peau douce, de François Truffaut, são imagens deflagradoras do pensamento aqui desenvolvido sobre performance. This article discusses the performative act as permanent self-deconstruction, a conflituous relation that produces alterities. Among those is the radical alterity, the whole other, which is the body’s schism between intimate and extimate, so alien to each other that they can’t communicate, becoming body and anti- body. Therefore, the spectator can only experience the performance if they also perform, deconstructing and experiencing themselves as the infinite inside the infinite of the other. The performances of Jean Desailly and Françoise Dorléac in scenes from François Truffaut’s film La peau douce are deflagrating examples of the thought hereby discussed. Todo desperto, cujo meio Dorme, enquanto inúmeras se tocam As carícias quietas desse coração cheio Que terminam na extrema boca. Rainer Maria Rilke1 Cena: O casal, Pierre e Nicole, chega a um quarto de hotel no campo, depois de viajar a noite toda. A jovem mulher, muito cansada, deita-se na cama ainda vestida e adormece. O homem tenta acordá-la, em vão. Então, ele lhe tira os sapatos, acariciando os pés sob as meias de nylon transparentes. Suas mãos sobem lentamente pelas pernas da mulher, ele empurra sua saia, revelando a cinta-liga que prende as meias. Desejosamente, ele abre os fechos e começa a tirar uma das meias, com delicadeza, acariciando a perna nua. Seu rosto, sua boca, estão muito perto da perna, quase a tocá-la. Mas tocam, sem tocar. Ela dorme e ele é só desejo. Corta. Essa cena é do filme La peau douce2, de François Truffaut, que conta a história de um homem que é arrebatado de desejo por uma aeromoça ao vê-la trocar os sapatos – ela está atrás da cortina que separa a cabine dos assentos e só se pode ver o movimento de seus pés. O filme é sobre essa relação “à flor da pele”. Corpo tocado, tocante, frágil, vulnerável, sempre mudando, fugindo, inapre- ensível, evanescente sob carícia ou sob golpe, corpo sem casca, pobre pele tensionada sobre uma caverna onde flutua nossa sombra...3 A pele é esse invólucro do corpo, sobre a qual se dão as relações. Tudo que se passa no/com o corpo, acontece sobre a pele. É ela que separa o dentro do fora. No filme de Truffaut, a pele é o protagonista da história, daí o título do filme. As meias de nylon, pele sobre pele, são fundamentais na trama, não somente na cena descrita acima. O filme mostra que a pele é a forma do corpo vivo, é nela que se dá a vibração, a pulsão, o desejo. Ela é casca, como diz Jean-Luc Nancy, mas é pura sensibilidade. É o lugar da relação. 208 Elisa de Magalhães A farmácia performática: corpo e anticorpo no ato performativo. 1. RILKE, Rainer Maria. As rosas. Trad. Janice Caiafa. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, p. 19. 2. La peau douce. Dir. François Truffaut. Prod. Les films du carrousel, 1964, DVD. 3. NANCY, Jean-Luc. Corpo, fora. Trad. Márcia Sá Cavalcanti Schuback. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2015, p. 99. 209 ARS ano 14 n. 28 Fig. 1 Fotogramas do filme La peau douce, de François Truffaut. E a relação, aqui, é o assunto: relação e performance. Toda performance artística só acontece na relação entre corpos – na qual todos são corpo-imagem: seja o corpo orgânico e/ou uma imagem de corpo, isto é, imagem como corpo e, ainda, corpo sonoro ou tátil. Para o estabelecimento dessa relação, é preciso envolvimento e disponibili- dade dos corpos envolvidos: disponibilidade para o outro, para o acolhi- mento do outro. É na experiência performativa mesma que a relação se estabelece; nem antes, nem depois, mas no aqui-agora da experiência. Se o corpo performativo abre-se à relação, então ele é um corpo político – aqui entendido como estabelecimento de relações, corpo na polis, e também em si próprio, como sua própria polis, e ainda considerando a cidade como corpo, corpo orgânico único formado de muitos corpos e variadas subjetividades. Ora, relações, na polis ou entre corpos (corpo e imagem-corpo), estabelecem fronteiras/bordas móveis, orgânicas, que aparecem e de- saparecem, que se formam de maneira insidiosa, onde o tempo é “pre- sente” em eterno devir, fronteiras aqui e lá, para a frente, para trás e para um lado e outro. Desses deslocamentos permanentes emergem interstícios, invaginações, entre-lugares: domínios da diferença, onde se formam novas subjetividades, minorias híbridas que negociam para adquirir autoridade, poder se reinscrever na ordem social. Em seu livro O local da cultura, o filósofo Hommi K. Bhabbha abre a introdução com uma epígrafe de Heidegger: “Uma fronteira não é o ponto onde algo termina, mas, como os gregos reconheceram, a fronteira é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente”4. O acontecimento, o encontro surpreendente, a possibilidade de inter- venção no aqui e agora, vem desse espaço intermédio. É no roçar das diferenças que a diferença se dá. No final do século XX, a Guerra dos Balcãs apresenta todos os roçares como diferenças, a ponto de o exército sérvio ter empreendido uma estratégia de conquista até hoje muito pouco comentada. Quando da invasão do território bósnio, para sua consolidação, todas as mulheres, de crianças a velhas, sem exceção, foram estupradas. O estupro sempre foi, ao longo da história, prêmio para os conquistadores juntamente com os saques. No entanto, a violação de todas as mulheres bósnias pelos sérvios na década de 1990, mais saque configurou- se como uma ação de conquista para além do território imediato: a mulher é capaz de gerar, seu corpo, portanto, é território ou, ainda, 210 Elisa de Magalhães A farmácia performática: corpo e anticorpo no ato performativo. 4. HEIDEGGER, Martin apud BHABBHA, Homi K. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliane Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998, p. 19. 211 ARS ano 14 n. 28 5. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart de Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012, p. 145. seu corpo é nação. Nas palavras de Gayatri Spivak: “O estupro grupal perpetrado pelos conquistadores é uma celebração metonímica de aquisição territorial”5. Nesse sentido, os ventres conspurcados já são ruína desde sem- pre, mas são também fronteiras, território híbrido, lugar da diferença. Os corpos híbridos gerados a partir daí buscarão sua reinscrição, sua sobrevivência na ordem social, mas a partir de nova perspectiva de ter- ritório e de nação. Do corpo e do corpo nu Na experiência da relação o corpo apresenta-se, propõe-se, chega como um fora, aproximando-se, confrontando mas também confrontado e se confrontando, rejeitando e se juntando. Um jogo que propõe conflito: nessa relação é que o conflito se instaura e se desconstrói. Voltando ao filme de Truffaut, Pierre e Nicole claramente se lançam num jogo: juntam-se, penetram-se, rejeitam-se, confrontam-se. Na relação, ou sua performance, seus corpos abrem-se e dão a ver que não são somente dois na relação. Como se sua intimidade se expusesse em alteridades. Como se seus corpos gerassem, na relação, suplências, alteridades, duplos. Nessa experiência, o corpo apresenta-se, propõe-se como um fora, como alteridade ou, como extimidade. Essa noção criada por Jacques Lacan, fala do ponto de nossa intimidade exterior, ou melhor da relação de nossa intimidade com o exterior, e sua definição está pulverizada em sua obra. O psicanalista dedica o Seminário 10, sobre a angústia, às questões do Outro e ao texto “O estranho”, de Freud, aprofundando, assim, a pesquisa sobre extimidade. O termo êxtimo aparece pela primeira vez no Seminário 7, A ética da psicanálise. No capítulo “O amor cortês em anamorfose”, ele diz: Da última vez, fiz-lhes um resumo sobre o sentido ou o objetivo da arte (...). Pode ser que aquilo que descrevemos como esse lugar central, essa exte- rioridade íntima, essa extimidade que é a Coisa, esclareça para nós o que resta ainda como questão, ou até mesmo como mistério, para aqueles que se interessam pela arte pré-histórica – ou seja, ela é precisamente o seu sítio.6 6. LACAN, Jacques. Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, 1959-1960. Trad. Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 169. No Seminário 16, “De um Outro ao outro”, mais uma vez ele fala de extimidade: Aqui, ele está num lugar que podemos designar pelo termo êxtimo, conju- gando o íntimo com a exterioridade radical. Ou seja, (...) puramente na re- lação instaurada pela instituição do sujeito como efeito significante, e como determinando por si só, no campo do Outro, uma estrutura de Borda.7 A alteridade, o outro, o duplo acontece neste ponto, onde os espaços – o interno, da intimidade, e o externo – se interseccionam e também são visíveis um para o outro, independe do tamanho que esses espaços possam tomar. Sendo assim, um corpo, o corpo performativo ou qualquer corpo não “é”, a não ser no “fazendo e se fazendo – sempre fora de tudo que poderia contê-lo”8. Nancy defende que o corpo é sempre um fora, o invólucro de uma intimidade que se lança, com ele, cada vez mais longe e mais para o fora. Para o filósofo, mesmo o corpo nu é um fora. A pele cobre, envolve a intimidade, é o que se vê ou o que se dá a ver do corpo. No entanto, o homem não anda nu, ele acrescenta ao seu invólucro natural a roupa, diferentemente dos outros animais. Cor- pos vestidos são marcas significantes do que se chama sociedade. A roupa indica, informa, comunica. Cada povo, grupo, família existe enquanto vestido e assim relaciona-se de acordo com seus códigos, símbolos, mitos – enquanto “com”. Por isso, o humano conhece a nudez, sem roupa ele está nu, ao contrário dos outros animais que são sempre nus. Todavia, o cor- po humano nu, só experimenta a nudez quando é visto por olhos vi- dentes. Apesar de o corpo ser sempre um fora – mesmo nu – é a nudez humana que corresponde à intimidade. O corpo nu mostra-se íntimo, na medida em que a nudez desnuda ou coloca ao vivo os termos da relação (Pierre enche-se de desejo com os pés nus atrás da cortina; em momentos como esse, a cada um deles, traçam-se os termos de sua relação com Nicole, que é sempre diferente a cada lance).9 A nudez e o sentir-se nu são temas abordados por Jacques Derrida em seu livro O animal que logo sou (a seguir)10. O filósofo descreve uma cena cotidiana: depois de tomar banho, ele está nu frente ao espelho e se percebe observado por sua gata. Ele sente 212 Elisa de Magalhães A farmácia performática: corpo e anticorpo no ato performativo. 7. Idem. Seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 241. 8. NANCY, Jean-Luc. Op. cit., p. 8. 9. Para uma contextualização do nu na história da arte ocidental ver MATESCO, Viviane. Corpo, imagem e representação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. Nesse livro Viviane Matesco contextualiza a ideia de corpo como imagem na sociedade ocidental, desde a Grécia antiga: “o corpo belo e nu não é dádiva da natureza, ao contrário, é uma conquista da civilização”, até a nudez culpada e a vergonha da nudez na sociedade cristã/católica. 10. DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou (a seguir). Trad. Fábio Landa. São Paulo: Editora UNESP, 2002. 213 ARS ano 14 n. 28 Fig. 2 Fotogramas do filme La peau douce, de François Truffaut. vergonha de sua nudez frente ao animal e se pergunta porque sentir vergonha. Afinal, os gatos e os animais não sentem vergonha da nudez, porque eles existem na nudez. “Por ele ser nu, sem existir na nudez, o animal não se sente nem se vê nu. Assim, ele não está nu”11. Diferentemente, o homem sente vergonha da nudez, na medida em que despido, ele está nu, ele sabe de sua nudez. Mesmo que aquela cena tenha se passado em sua casa, e que o gato vidente não fosse qualquer gato, mas a sua gata, transido de pudor, ele apressou-se por cobrir-se, cobrir a obscenidade do evento, resguardar sua intimidade. E ainda perguntou-se: mas pode o gato ver sua nudez? A intimidade é o lugar onde as diferenças entre os sujeitos da re- lação se apresentam, e sem a diferença entre os sujeitos, a relação não é possível. A troca entre os sujeitos não é um jogo simples, mas se dá por uma ruptura, um arrombamento no íntimo de modo que ele dê a ver as diferenças. Pierre tira as meias de nylon de Nicole, passando a mão na perna nua, acaricia sua cabeça por debaixo do cabelo, como se tentasse com essas ações consumar um coito, penetrá-la, descobrir-lhe o íntimo. No entanto, todo corpo, inclusive o que é invaginado, é envolvi- do por uma pele. Mesmo no ato sexual, no qual há a penetração de fato, ainda assim, não se chega ao íntimo, está-se sempre no/com o fora na relação. A aproximação do olhar do outro desnuda o corpo vestido ou nu. Como o olhar do outro é sempre sem fundo, a intimidade se desvela velando sua identidade, dissimulando sua verdade para nunca se fazer presente inteiramente, completamente, de modo a nunca ser capturada no abismo do olhar do outro. Ela se mostra e se esconde por desejo da experiência da diferença, da heterogeneidade. Está sempre em fuga, de modo que a nudez nunca é definitiva, final, mas desdobra-se sempre em novos desnudamentos. Um corpo, nu ou não, olhado por olhos videntes abre-se a esse olhar, abre-se ao seu acolhimento, desvela-se, desnuda-se para tam- bém recolhê-lo. Nessa efração dos corpos se desnudando, cada um se apresenta em suas diferenças, apresentam-se como alteridades. Estão sujeitos “à implacável lei da hospitalidade”: O hospedeiro que recebe (host), aquele que acolhe o hóspede, convidado ou recebido (guest), o hospedeiro, que se acredita proprietário do lugar, é na verdade um hóspede em sua própria casa. Ele recebe a hospitalidade que ele oferece na sua própria casa, ele a recebe de sua própria casa – que no fundo 214 Elisa de Magalhães A farmácia performática: corpo e anticorpo no ato performativo. 11. Ibidem, p. 17. 215 ARS ano 14 n. 28 12. DERRIDA, Jacques. Adeus a Emmanuel Levinas. Trad. Fábio Landa com colaboração de Eva Landa. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 57-58. não lhe pertence. O hospedeiro como host é um guest. A habitação se abre a ela mesma, a sua “essência” sem essência, como “terra de asilo”. O que acolhe é sobretudo acolhido em-si.12 A experiência performativa é a experiência por excelência da re- lação do olho vidente e do visto. O corpo que performa, sendo visto e sendo vidente, abre-se a alteridades que chegam como estranhos fami- liares. Essa abertura desdobra-se em efração, numa ruptura violenta do corpo performático. Os campos íntimo e êxtimo estão visíveis um para o outro, é o corpo se fazendo no fora. A relação entre os campos gera uma alteridade tão radical que, embora visíveis um para o outro, não se reconhecem na diferença. Um corpo é uma pro-posição, uma chegada que se adianta e se põe adiante, no fora, como um fora. Pro-posto é que o corpo não se confunda com nenhum outro, que não recubra nenhum outro e nem seja por nenhum outro recoberto – nunca, a não ser quando estiver em jogo uma descoberta, 13 Corpo e anticorpo na experiência performativa O corpo se põe, dá a ver sua extimidade que se apresenta como alteridade radical, como o todo outro. Surge como um anticorpo, uma suplência curativa e venenosa do corpo, um phármakon, capaz de curar e matar. Tomo emprestado a ideia de phármakon de Jacques Derrida14. Fazendo uma releitura do “Fedro”, de Platão, na passagem em que Sócrates fala do anúncio que Theut faz da escrita para Thamous, como um phármakon para a memória, o filósofo francês discute o caráter de suplência de ambos – escrita e phármakon –, ou melhor, ele diz que ambos carregam sua suplência. Nesse texto, Derrida mantém a palavra em sua transliteração do grego, em vez de utilizar traduções comuns como remédio, veneno e droga, com o intuito de “preservar o que ele considera um dos objetivos de Platão ao apresentar a escrita como phármakon: mostrar que não há remédio inofensivo e que o phármakon não poderia ser simplesmente maléfico ou benéfico”15. A escritura, como é discutida em “Fedro”, é veneno e é remédio para a memória, é “aparência” e não a verdadeira sabedoria. A sabedoria 13. Ibidem, p. 9. o por-se a descoberto de cada corpo. 14. Sobre esse assunto, ver DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Trad. Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras, 2005. 15. RODRIGUES, Carla. Duas palavras para o feminino: hospitalidade e responsabilidade: sobre ética e política em Jacques Derrida. Rio de Janeiro: Nau, 2013, p. 35. estaria junto daquele que fala e seria legitimada por ela. Para Platão, há uma ligação natural entre o pensamento e a voz, e essa naturalidade é perdida na escrita. Como se a escritura como suplência do pensamento falado viesse de fora e, por isso, estivesse aquém da verdade, pois a verdade está na fala, que é pensamento vivo e não na escrita, e daí a comparação com o phármakon. Derrida sugere ainda uma relação filial entre a escrita e a fala. Ele diz: fala é o pai e escrita é o filho. O filho depende da referência do pai para manter-se vivo como fala. Sem seu referente – a fala é viva, a escrita é morta – “a inscrição é, pois, a produção do filho, ao mesmo tempo que a construção de uma estruturalidade”16 – é, de certa forma, metáfora do referente vivo. A escrita separada do sujeito-falante mostra-se como parricídio. A inscrição da fala condena-a à morte, à permanência, ou à condição horizontal do morto. A escrita, portanto, é remédio, pois inscreve o falado, mas é veneno para a memória. É jogo de presença e ausência. Trata-se de um movimento infinito de construção e desconstrução. Trata-se de um jogo. Sim, um jogo ético-estético-político. Trazendo o pensamento derridiano sobre escritura e fala para a performance, na experiência performativa o corpo que performa des- nuda-se “diante de”, abre-se, mostra-se em sua diferença, apresenta- -se também como alteridades, assim, plural. Daí surge o anticorpo, ou o phármakon que ele próprio carrega: sua alteridade radical. A alteridade radical é aquela com a qual não há troca, não há comuni- cação, é o todo outro, o “sem fundo”, é rastro: “a marca de ausência da presença”17. Ou é a différance, movimento do qual a coisa mesma sempre escapa, só há différance na impossibilidade. O performer é corpo e anticorpo, corpo que gera seu próprio phármakon. O ato performativo se dá na relação, no “diante de”. A experiência do ato é o locus do conflito onde o corpo se abre a alteridades. A discussão ou o logos, é a farmácia performática. O phármakon não preexiste na farmácia, ali ele não é nada, porque a farmácia não é propriamente um lugar. Ele surge no e do conflito, na ação performativa. O que preexiste, o que está dado antes da relação é o mundo, e nele a farmácia é, funda-se com, confunde-se. No mundo há algo, que só surge e age como phármakon, veneno ou remédio, na ação performativa. Assim, o corpo performativo é aquele em permanente estado de busca. Ou, para usar uma expressão de Nancy, em permanente “afazer”18. 216 Elisa de Magalhães A farmácia performática: corpo e anticorpo no ato performativo. 16. RODRIGUES, Carla. Op. cit., p. 116. 17. SPIVAK, Gayatri. Translators Preface. In: DERRIDA, Jacques. Of Gramatology apud RODRIGUES, Carla. Op. cit., p.30. 18. NANCY, Jean-Luc. Op. cit., p. 35: “O corpo não se representa a si mesmo. Ele apresenta que se apresenta para fora, como ele se volta para fora, como ele é esse fora de “mim” que não possui um “dentro” a não ser para fazê-lo vir à imagem, no como, de que maneira, em que tom, em que nuança, esse é o afazer da pintura”. 19. NANCY, Jean-Luc.Op. cit., p. 79. 20. Ibidem, p. 79. 21. Não poderia deixar de mencionar aqui a leitura de Jacques Derrida sobre Antonin Artaud. No entanto, como o presente artigo, não comporta espaço para isso, remeto a dois ensaios de Derrida: “A palavra soprada” e “O teatro da crueldade e o fechamento da representação”, ambos em DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 2005; bem como a um outro ensaio, de HADDOCK-LOBO, Rafael. Representação e crueldade: Derrida encena Artaud. In: Revista AISTHE, no 6, 2010, p. 127-139. 217 ARS ano 14 n. 28 Se o corpo performativo só se dá “diante de”, ele se dá ou ele se propõe na sua exposição. O corpo e suas alteridades se apresentam ou se expõem no vazio entre os corpos da relação performativa. O vazio é um dos quatro incorporais, na teoria estoicista – os outros são o tempo, o lugar e o lekton, o dizível, o exprimível. Nancy afirma que o espaçamento entre os corpos combina os quatro incorporais. O espaçamento a que me refiro combina o vazio e o lugar, o primeiro per- mitindo a distinção dos lugares, e o tempo não é outra coisa que o espa- çamento de sentido, a distensão pela qual ele tende para si mesmo (ou se quisermos, o significante em direção ao significado).19 Ora, a exposição, em qualquer relação, é fundamental, na medida em que é preciso se reconhecer na diferença do outro, ou pela essência de cada um. Mais: “é condição da co-presença”20. To- davia, só haverá exposição, ou o fazer-se de cada corpo, se cada um fizer-se na relação do seu interior com seu exterior, dele com suas alteridades, apresentando os exprimíveis que não encontram sua ex- pressão na linguagem, são acontecimentos, eventos. Nesse sentido os corpos, vêm à presença, fazendo-se, propondo-se. Eles estão na exposição por aproximação e distanciamento. Assim, o corpo performativo é corpo e corpo-imagem: sua [a]presentação é presença e ausência, ao mesmo tempo. Porque aquilo que se [a]presenta é sempre mais de um, é a apresentação do corpo e seus rastros, seus espectros, alteridades. Seu vir à presença é sempre um jogo de desvelamento e velamento. Revela, ao mesmo tempo que esconde, deixando que apenas se vislumbre seu íntimo no evento ou na presentação21. A expectação performativa Nesse jogo entre o que se mostra e o que se apresenta como ausência, rastro, há outro corpo – o espectador. Aquele que expe- riencia uma performance, só o faz sendo ele também um corpo per- formativo – só há performance na relação, no estar/ser “com” –, que se abre ao jogo com suas alteridades e se faz presente na exposição. Na experiência é preciso abrir-se, deixar-se abrir, correr o risco de perverter-se. É preciso isso, é preciso esta possível hospitalidade ao pior para que a boa hospitalidade tenha sua chance, a chance de deixar vir o outro, o sim do outro não menos que o sim ao outro.22 O espaço performativo é área de conflito justamente porque o acolhimento só se dá no reconhecimento do outro, na clivagem de cada corpo no corpo êxtimo. E o espaço agônico neutraliza-se quando o “com” é substituído por “e”, transformando momentaneamente aquele espaço em híbrido; que desdobra-se em novo conflito, na medida em que o “corpo só é fazendo e se fazendo – sempre fora de tudo que po- deria contê-lo”23. Assim, o corpo performativo que se propõe, que se faz na rela- ção pode vir à presença – dar-se a ver – em qualquer suporte, corpo como imagem e também imagem como corpo. A relação performativa com o espectador não se dá necessariamente na presença física dos corpos – do(s) espectador(es) com o(s) performer(s). O corpo que se apresenta é sempre imagem, ele se faz no fora. E a imagem que se apresenta como corpo, na relação, é corpo. Assim o corpo performativo pode ser pro-posto em fotografia, vídeo, holografia, realidade ampliada, não importa o suporte (o suporte importa para a obra, não para a ex- periência que chega como evento). A relação, de quem observa, com a experiência artística só é possível se o observador abrir-se à experiência, experimentar-se como corpo fora, experienciar e experienciar-se como evento, heterogeneidade ou suplemento, fora de qualquer possibilidade de linguagem; desconstruir-se ou preparar-se para a vinda do outro, abrir-se à hospitalidade incondicional; dado o visto, além das alterida- des, no êxtimo surge a alteridade radical, o todo outro, esse algo fora da linguagem ou, para usar uma categoria dos estoicos, o exprimível: “À frase ‘Este corpo tem uma extensão’ poderíamos responder: ‘Absurdo!’ – mas estamos inclinados a responder: ‘Claro!’ – Por quê?”24 Elisa de Magalhães é professora da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutora em Artes Visuais pela mesma instituição e pós-doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes da Universidade Federal Fluminense, com bolsa de pesquisa pelo CNPq. Como artista, participou de exposições individuais e coletivas no Brasil e no exterior. Em 2014, publicou o livro Nenhuma ilha, sobre sua obra, organizado por Marcelo Campos. 218 Elisa de Magalhães A farmácia performática: corpo e anticorpo no ato performativo. 22. DERRIDA, Jacques. Op. cit., 2004, p. 52. 23. NANCY, Jean-Luc. Op. cit., p. 8. 24. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Trad. Marcos G. Montagnoli. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2012, p. 126. ao lado, manifestação anti- católica em Londonderry 1969 Artigo recebido em 03 de novembro de 2016. DOI: 10.11606/issn.2178-0447. ars.2016.122569.
INSURREIÇÃO NOS JARDINS OU ACERCA DO ENFRENTAMENTO IMEDIATO L’INSURRECTION AUX JARDINS OU AUTOUR DE L’AFFRONTEMENT IMMÉDIAT Elisa de Magalhães EBA/UFRJ RESUMO Este artigo fala do corpo insurgente feminino e tem como ponto de partida a história da mulher de Lot, contada por duas poetas eslavas, distantes no tempo em quase 50 anos: pela polonesa Wislawa Szymborska, na década de 1970, e pela russa Anna Akhmátova, nos anos 1920. A mulher de Lot foi condenada por Deus a transformar-se em estátua de sal, e punida para a eternidade com a ausência de nome próprio por desobediência, por que olhou para trás. A autora, artista Elisa de Magalhães, desdobra a ideia de insubordinação, presente desde dois trabalhos seus – Persona Vitrea, 2002; e LC:FPRCMDBCMR:EM, 2003 –, para os quais pesquisou sobre Lilith, a primeira mulher de Adão, que se rebelou contra a subalternidade a que foi submetida pelo homem e por Deus. A partir desses trabalhos, o corpo performativo, da experiência artística, o próprio corpo da artista, se insurge na imagem. PALAVRAS-CHAVE Insurreição; gênero; alteridade; experiência; imagem. SOMMAIRE Cet article est à propos du corps féminin insurge. Le point de partie est l’histoire de la femme de Lot, raccontée par deux poètes eslaves, separées dans le temps pour presque 50 années: la polonaise Wislawa Szymborska, dans la décade 1970, et la russe Anna Akhmátova, dans la décade 1920. La femme de Lot a eté punie par Dieu. Transformée en statue du sel, il l’a condamné a passer l’eternité à l’absence du nom, parce qu’elle a regardé dérrièrre soi. L’auteur et artiste Elisa de Magalhães, dédouble l’idée d’insubordination, présente dans deux des ses oeuvres – Persona Vitrea, 2002; et LC:FPRCMDBCMR:EM – pour lesquelles elle a recherchée sur Lilith, la première femme d’Adam, qui s’est rebellée contre la subalternité a qu’elle a eté soumise par l’homme et par Dieu. Dès ces travails, le corps performatif, l’expérience artistique, le corps même de l’artiste, s’insurge dans l’image. MOTS-CLÉS Insurrection; genre; altérité; expérience; image. Dizem que olhei para trás de curiosa. Mas quem sabe eu também tinha outras razões. Olhei para trás de pena pela tigela de prata. Por distração – amarrando a tira da sandália. Para não olhar mais para a nuca virtuosa do meu marido Lot. Pela súbita certeza de que se eu morresse ele nem diminuiria o passo. Pela desobediência dos mansos. Alerta à perseguição. Afetada pelo silêncio, na esperança de Deus ter mudado de ideia. [...] (SZYMBORSKA, 2011) Estes são os primeiros versos do poema A mulher de Lot, da polonesa Wislawa Szymborska. Em primeira pessoa, o poema é o depoimento libertário de uma mulher que é condenada justamente por isso. Na fuga de Sodoma, ao olhar para trás, desobedece às ordens divinas, e por isso vira estátua de sal. Ela vira para trás e o poema elenca possibilidades de motivos para tal atitude, entre eles aquele que escancara sua rebeldia: o de não querer mais ter à vista a nuca virtuosa do obediente marido, que não olha para trás nem para preocupar-se com ela. Uma questão entre o ver e o olhar, entre o direito de ver e o de ser vista. Na Bíblia, a mulher de Lot sequer tem nome. Sua história consta no texto como paradigma da desobediência e da condenação por rebeldia. Por quê? A obscura e desconhecida a quem a história negou o nome e permitiu apenas ser “a mulher de”, e cuja punição imediata foi ser transformada em estátua de sal, teve como verdadeira condenação sua identidade apagada para sempre. Em O animal que logo sou, o filósofo Jacques Derrida diz que nomear é, ao mesmo tempo, condenar à morte e garantir a sobrevivência, ter um nome é saber-se mortal, dar um nome é tomar posse (DERRIDA, 2002, p.37 – 43) – tanto como propriedade, por um lado, ser dono; quanto como pertencimento, pelo outro, ser reconhecido como parte de algo, ser grei –, ela tornou-se sem direito a nome, voz e lugar por toda a eternidade, a nada pertence. Esse é o tamanho da condenação, e só sabemos disso por ela ter sido a ... de Lot. Pouco mais de 50 anos antes (o poema de Szymborska é de 1976), em 1924, na turbulenta época da sucessão de Lênin, a poeta russa que se recusou a ir para o exílio, Anna Akhmátova, havia escrito um poema com o mesmo título, no qual denunciava a insignificância de uma mulher desobediente que, paradoxalmente, nunca é esquecida: E o homem justo seguiu o enviado de Deus, Alto e brilhante, pelas negras montanhas. Mas a angústia falava bem alto à sua mulher: “Ainda não é tarde demais; ainda dá tempo de olhar as rubras torres de tua Sodoma natal, a praça onde cantavas, o pátio onde fiavas, as janelas vazias da casa elevada onde deste filhos ao homem bem amado”. Ela olhou e – paralisada pela dor mortal -, Seus olhos nada mais puderam ver. E converteu-se o corpo em transparente sal E os ágeis pés no chão se enraizaram. Quem há de chorar por esta mulher? Não é insignificante demais para que a lamentem? E, no entanto, meu coração nunca esquecera Quem deu a própria vida por um único olhar. O último verso apresenta, em sua plenitude, o direito ao exercício do direito de olhares. A relativização disso pela preponderância do homem sobre a mulher é revelada mais uma vez, em outra cena bíblica, que ocorreu pouco antes. Lot, o piedoso, era obediente a Deus-Elohim, assim como seu tio Abraão. Deus ordenou a Abrãao matar seu filho primogênito, mas antes do ato deveria guardar silêncio aos seus, deveria esconder de sua mulher, sua companheira e mãe de seus filhos, e deles próprios, a premeditação. Há no ato de Abraão – o obediente – mentira, traição e assassinato. Embora tenha cometido o gesto do crime, não o concretizou apenas por que foi impedido por um anjo. A traição aos seus se dá pela quebra do compromisso de zelar por todos e a mentira ao negar a verdade à sua companheira e filhos, que percebiam seu silêncio com preocupação. Assim, mentira, traição e assassinato do outro, ainda que por obediência, ainda que não realizado, constituem-se como o ato fundador das três grandes religiões monoteístas, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Para aprofundar essa discussão, que não é o centro deste ensaio, a autora indica o livro Donner la mort (DERRIDA, 1999). A mulher sem nome defende seu direito de olhar seja por qual motivo for, acaso (Szymborska) ou intenção (Akhmátova), a ponto de dar mais que a própria vida pelo exercício desse direito: o nome. Todavia, antes disso, há outra história de apagamento. Talvez por ter sido a primeira vez, talvez pela inexperiência de Jeová-Deus-Alá, chegou até nós, apenas nas edições completas da Bíblia, outra personagem libertária: Lilith, primeira mulher de Adão. Sua mitologia vai além dos escritos bíblicos, está presente em diversas outras culturas, por isso sabe-se mais sobre ela do que sobre a mulher de Lot. No entanto, sua presença é obscura no texto bíblico. Sobre Lilith, encontrei alguma literatura. O que me interessa nas duas personagens – a mulher de Lot e Lilith – é a clara afirmação de uma posição política, a declaração de independência ante o patriarcado e contra a obediência cega, que se apresentam nos textos bíblicos e são a base das sociedades ocidentais. A primeira vez que tive interesse pela mitologia de Lilith, foi numa pesquisa para um de meus primeiros trabalhos, Persona Vitrea, de 2002. Era uma instalação grande, composta de 5 partes – 5 pequenas instalações –, que formavam um grande tabuleiro de xadrez (ocupava todo o ambiente da sala de exposição). PV era baseada em dois livros: Através do Espelho, de Lewis Carroll e A Ilha do dia anterior, de Umberto Eco. Cada uma das pequenas instalações, por sua vez, tinha suas próprias referências que se cruzavam com as principais. Para a Casa da Rainha Vermelha, apoiei-me no poema Uma temporada no inferno, de Rimbaud, e na história de Lilith, a mulher de Adão que fugiu para o inferno. Esta parte consistia numa passarela de tapete vermelho que saía da casa do tabuleiro e conduzia à fotografia de meu corpo nu, em tamanho natural, feita com uma câmera pinhole de duplo diafragma, de costas, como que indo embora. A foto é filtrada em vermelho. Nesta fotografia, o corpo insubordinado de Lilith, recusa-se a jogar; recusa o jogo, vira as costas e sai. Elisa de Magalhães, Persona Vitrea (2002) / O caminho de Lilith (2002) Em 2003, aprofundei a pesquisa sobre as mulheres de Adão para realização do trabalho: LC:FPRCMDBCMR:EM. Trata-se de uma fotografia preto e branca de mim mesma, nua, em dupla exposição na mesma chapa, com uma câmera antiga da qual retirei as lentes, substituídas por um anteparo com dois furos à guisa de diafragmas, de tamanhos diferentes, um menor que o outro, de modo que a imagem vem sempre acompanhada de um fantasma. (Todas as fotos de meu corpo são feitas por mim mesma, no atelier/estúdio com cabo disparador, sendo fotógrafo e modelo, ao mesmo tempo.) Como uma fórmula, as letras do título do trabalho são iniciais dos artistas que provocaram e fazem parte dessa foto: Lucas Cranach, Francis Picabia, René Clair, Marcel Duchamp, Bronia Pearlmutter-Clair, Man Ray e Elisa de Magalhães. Adão e Eva de Lucas Cranach (1531) / Foto de Man Ray do ciné-sketch Adão e Eva (1924), com Marcel Duchamp e Bronia Claire / LC: FPRCMDBCMR: EM de Elisa de Magalhães (2003) Lucas Cranach é uma espécie de origem, ou melhor, a arqueologia desse trabalho: em 1531, ele pintou a tela, Adão e Eva que, por sua vez, foi referência para o ciné-sketch também intitulado Adão e Eva, realizado no réveillon de 1924, e que tinha roteiro de Francis Picabia, direção de René Clair, com Marcel Duchamp como Adão e Bronia Perlmutter-Clair como Eva. Esse sketch ficou mais conhecido através uma fotografia de Man Ray. No entanto, para além da tela de Cranach, ou antes dela, a arké de LC:FPRCMDBCMR:EM, está na história das mulheres de Adão, sobretudo a de Lilith e a mitologia em seu entorno. Assim, antes de representar-me como Adão e Eva, apresento-me como Lilith e Eva. No livro Lilith, a lua negra, do psicólogo italiano Roberto Sicuteri, o autor observa que o mito da primeira mulher traz consigo a dualidade: na tradição egípcia e greco-romana, por exemplo, ela está ligada ao ciclo da Lua. Quando está cheia, brilhando no céu, ela é boa, a grande-mãe, deusa da fertilidade. Quando desaparece ou é lua nova, ela é cruel, destrutiva e maligna – a Lua Negra. Na tradição suméria, Lilith é representada por uma figura híbrida, mulher e bicho, ao mesmo tempo. Na cultura hebraica, consta em Gênesis I – Sicuteri fala de Gênesis I e II, vou manter essa forma, pois as interpretações e as bíblias variam segundo expurgos das traduções –, que Adão nasceu das mãos de Jeová como um ser andrógino, macho e fêmea, “supremo princípio da harmonia total do Uno que é feito de Dois” (SICUTERI, 1998, p.06), por isso mais perto da imagem de Deus. Em Gênesis I, 27 é dito: "Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; macho e fêmea o criou" (SICUTERI, 1998, p.06). Com suas mãos Deus pegou terra dos quatro cantos do planeta e borrifou com água dos mares e rios existentes. Uma massa de epher, dam, marah (pó, sangue, bile) deu vida a Adão, o primeiro homem vivente, o Adão andrógino, dual. Adão trazia em si os dois princípios, o masculino e o feminino. O autor diz que na tradição talmúdica, no Midrash aramaico do Beresit-Rabba (Rabi Oshajjah) encontra-se o comentário dele sobre o versículo de Gênesis I, 26: E Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. (Gênesis I, 26). R. Johanan principiou: De costas e de frente você me abraça (Sl.. 139,5). Disse R. Johanan: Se o homem o merece, gozai de dois mundos. ... Disse Jirmejah Eleazar: Quando o Senhor, Ele seja bendito, criou o homem, o criou hermafrodita, como é dito: Macho e fêmea os criou e chamou o nome deles ‘Adão’. Disse Shemuel Nahman: Quando o Senhor, Ele seja bendito, criou o homem, o criou bifronte, dividiu-o e resultaram dois dorsos, um aqui e um ali. (SICUTERI, 1998, p. 07) Deus cria homem e mulher em um só corpo, um ser bifronte e mais tarde os separa. Mas não está somente nas citações rabínicas a existência de um ser andrógino. Em O Banquete, Platão, fala do mito primitivo da androginia. Aristófanes, em seu discurso diz: Para começar, a humanidade compreendia três sexos, não apenas dois, o masculino e o feminino, como agora. O andrógino era então, quanto à forma e à designação, um gênero comum, composto do macho e da fêmea. Dele nada mais resta do que o nome, caído em desprezo. A forma de cada homem era um todo esférico. O dorso e os flancos fechavam-se em círculo. Cada um desses seres era provido de quatro mãos, movia-se com igual número de pernas. Um pescoço torneado sustinha dois rostos, semelhantes em tudo. Uma era a cabeça em que se opunham dois rostos. Os corpos ostentavam quatro orelhas e um par de genitais; a exemplo destes, dobrados eram os outros órgãos. Andavam eretos como os homens de agora em qualquer direção que se locomovessem. Quando empreendiam corrida veloz, cambalhotavam. De pernas erguidas formavam uma roda. Rolavam céleres com seus oito membros estendidos. Três eram os gêneros. O gênero masculino era descendente do sol; o feminino, da terra; o que reunia os dois gêneros em si mesmo descendia da lua, dotada de características desses dois astros. (PLATÃO, p. 61-63) Na versão d’O Banquete, os andróginos eram vigorosos, fortes e presunçosos, e voltaram-se contra os deuses, como conta Aristófanes, a partir do que foi dito por Homero. Sem querer matá-los os deuses decidem dividi-los como meio de diminuir-lhes a força. (Na Odisseia, Homero não conta não assim. Ver Canto XI, 305-320, na tradução de Trajano Vieira). Mas, voltando às interpretações rabínicas, no final de Gênesis I, Deus, no encerramento do sexto dia, percebe a solidão de Adão e cria a mulher, Lilith. E aí termina esse livro. Já em Gênesis II, a mulher é Eva, criada da costela de Adão. No entanto, há no livro a indicação de uma outra mulher em Beresit-Rabba: R. Jehudah em nome de Rabi disse: No princípio a criou, mas quando o homem a viu cheia de saliva e de sangue afastou-se dela, tornou a criá-la uma segunda vez, como está escrito: “Desta vez. Esta e aquela da primeira vez.” (SICUTERI, p. 14) Há, aqui, ainda, a possibilidade de que o “desta vez”, seja com a soma de “esta e aquela da primeira vez”. Essa terceira mulher, tenha sido criada antes ou depois de Lilith, seria um fracasso de Deus que a exterminou, apagou-a, pois teria desagradado os olhos do homem. Deus comete um feminicídio de fato. Sicuteri, embora não enverede por esse caminho, diz que a mulher, nascida coberta de sangue e saliva, como Adão, era Lilith, uma das últimas criações de Deus, concebida nas últimas horas do sexto dia, junto com demônios e répteis. Ao término do dia no qual Deus repousou, Adão já havia consumado sua relação com Lilith. O amor de Adão com Lilith foi logo perturbado; não havia paz entre eles porque quando se uniam na carne, na posição mais natural indicada por Deus para a relação sexual humana — a mulher por baixo e o homem por cima — Lilith mostrava impaciência. Assim, ela perguntava a Adão: “— por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir-me sob teu corpo?" (SICUTERI, p. 19). Talvez Adão ficasse perplexo, em silêncio. E ela insistia: "— Por que ser dominada por você? Contudo eu também fui feita de pó e por isso sou tua igual". (SICUTERI, p. 19). Ela pede para inverter as posições sexuais para estabelecer uma paridade, uma harmonia que deve significar a igualdade entre os dois corpos e as duas almas. Mas Adão recusa: Lilith é submetida a ele, ela deve estar simbolicamente sob ele, suportar o seu corpo. Portanto, existe um imperativo, uma ordem que não é lícito transgredir. A mulher não aceita essa imposição, rebela-se contra Adão. O Deus Jeová só dá a Lilith duas opções: ou submete-se ou vai para o inferno. Lilith escolhe o inferno. E tudo recomeça em Gênesis II, dessa vez com Eva. Podemos considerar o desaparecimento ou o apagamento de Lilith, do Gênesis I para o II, como um feminicídio, mesmo que metafórico. A desobediente Lilith vai para o inferno e casa-se com Samael, o demônio, e desaparece do texto sagrado a partir do Gênesis II. Mas há o feminicídio de fato, da outra mulher antes de Lilith (ou até entre Lilith e Eva), que talvez possa ser o primeiro assassinato d’Ele – Deus Jeová – que a apagou da história, matou-a, da mesma maneira que viria a fazer com a mulher de Lot. Pensando na duplicidade dos livros sagrados, da própria mitologia de Lilith, na insubmissão dessa personagem mitológica, autora da primeira reivindicação feminista, parti da foto do ciné-sketch, que tinha como base a tela de Cranach, para criar uma imagem dupla só fêmea, uma Lilith dupla (ela como seu próprio duplo) ou Lilith e Eva, clicada duas vezes na mesma chapa; ela mesma a personagem, pega e oferece a maçã para si própria. A artista é, além disso, também modelo e fotógrafa; e troca a maçã pelo cabo disparador da câmera de duplo diafragma que ainda gera a imagem com seu fantasma. Talvez seja a tentativa da redenção pela insubordinação, na imagem. Esse trabalho, e em uma série de outros em que trabalhei com a câmera pinhole de duplo diafragma, faz parte de um procedimento com o qual perco a qualidade da fotografia, que passa a existir apenas como suporte. A imagem é impregnada diretamente no filme, ela é a questão do trabalho e não a fotografia. Trabalhava sozinha em meu atelier, posicionando corpo e câmera com auxílio de espelhos, executando dois papéis no mesmo tempo e espaço: nem somente fotógrafo, nem somente modelo, mas ambos e mais ainda o de artista, agente da ação. A partir dessas experiências iniciais, fui ampliando a ideia de ver, corpo e relação. Na experiência artística estamos sempre “diante de”, de um corpo individual ou de um corpo coletivo. O corpo que está na experiência, desnuda-se, abre-se, mostra-se em sua diferença, apresenta-se como alteridade, gera, na experiência, uma espécie de suplente, ou suplemento. Um corpo que se dá a ver ao olhar do outro e que, ao mesmo tempo, gera: o corpo vem também como anticorpo, ambos – corpo e anticorpo – incomunicáveis e, no entanto, um não há sem o outro – alteridade radical. Com a alteridade radical não há troca, comunicação: ela é o todo outro, o sem fundo, o rastro. É a différance: movimento do qual a coisa mesma sempre escapa. Sim, movimento, na medida em que a différance só existe na impossibilidade, no movimento de escapulir. Na experiência, o corpo é mais de um, é corpo e anticorpo, corpo que gera seu próprio phármakon. Em A Farmácia de Platão (DERRIDA, 2005), livro em que Derrida faz uma releitura do “Fedro”, da passagem em que Sócrates fala do anúncio que Theut faz da escrita para Thamous, como um phármakon para a memória, o filósofo discute o caráter de suplência de ambos – escrita e phármakon , ou melhor, ele diz que ambos carregam sua suplência. O filósofo faz questão de manter a palavra em sua transliteração do grego, em vez de utilizar traduções comuns como remédio, veneno e droga, com o intuito de “preservar o que ele considera um dos objetivos de Platão ao apresentar a escrita como phármakon: mostrar que não há remédio inofensivo e que o phármakon não poderia ser simplesmente maléfico ou benéfico” (RODRIGUES, 2013, p. 35). A escritura é veneno e remédio para a memória, é “aparência” e não a verdadeira sabedoria. A escrita é remédio, pois inscreve o falado, mas é veneno para a memória. É jogo de presença e ausência. Trata-se de um movimento infinito de construção e desconstrução. Talvez por não ter tido nome (nomear é condenar à morte, diz Derrida em O Animal que Logo sou, a seguir, justamente comentando a Bíblia, quando Adão dá nome aos animais), a mulher de Lot nunca foi esquecida, apesar da tentativa de apagamento. Sem nome, ela morre na Bíblia como estátua, mas permanece como um monumento no imaginário ocidental – para uns como desobediente, para outros como insurgente. Sua insignificância sem nome parece, ao gritar de dentro da dureza em que se transformou, fazer-se ver: ainda estou aqui. A experiência do ato é o locus do conflito, onde o corpo se abre a alteridades, onde ele está em permanente estado de busca ou em permanente “afazer”. Esse corpo composto de “mais de um”, ou o corpo e sua espectralidade só se apresenta em sua exposição: é a relação – o dar-se a ver e o direito de olhar(es) – ou o “diante de” que possibilita a apresentação. Dizendo de outro modo, é preciso se reconhecer na diferença do outro: essa “é condição da co-presença” (NANCY, 2015, p. 79). Todavia, só haverá exposição, ou o fazer-se de cada corpo, se cada um fizer-se na relação do seu interior com seu exterior, dele com suas alteridades. Os corpos vêm à presença, dão-se a ver e ao direito de olhar, fazendo-se, propondo-se. Eles estão na exposição por aproximação e distanciamento. O corpo performativo da/na experiência é corpo e corpo-imagem: sua [a]presentação é presença e ausência, ao mesmo tempo. Porque aquilo que se [a]presenta é sempre mais de um, é a apresentação do corpo e seus rastros, seus espectros, alteridades. Seu vir à presença é sempre um jogo de desvelamento e velamento. Revela, expõe-se, ao mesmo tempo que esconde. O corpo insubordina-se na imagem – na sua [a]presentação como corpo-imagem –, dissemina-se, toma uma posição política. Como Lilith, que por isso desaparece no livro sagrado. Como a mulher de Lot, condenada à morte e à não identidade somente porque queria ver. [...] Olhei para trás de solidão. De vergonha de fugir às escondidas. De vontade de gritar, de voltar. Ou foi só quando um vento bateu, Despenteou meu cabelo e levantou meu vestido. Tive a impressão de que me viam nos muros de Sodoma e caíam na risada, uma vez, outra vez. Olhei para trás de raiva para me saciar de sua enorme ruína. [...] (SZYMBORSKA, 2011) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AKHMÁTOVA, Anna. Antologia Poética/ Anna Akhmátova. Tradução: lauto Machado Coelho. Porto Alegre: L&PM, 2009. DERRIDA, Jacques. A Farmácia de Platão. Tradução: Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras, 2005. ________________. O animal que logo sou (a seguir). Tradução Fábio Landa. São Paulo: UNESP, 2002. ________________. Donner la mort. Paris: Galillée. 1999. HOMERO. Odisseia. Tradução Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2011. NANCY, Jean-Luc. Corpo, fora. Tradução Márcia Sá Cavalcante Schuback. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015. PLATÃO. O Banquete. Tradução Donaldo Schüller. Porto Alegre: L&PM, 2017. RODRIGUES, Carla. Duas palavras para o feminino: hospitalidade e responsabilidade: [sobre ética e política em Jacques Derrida]. Rio de Janeiro: Nau, 2013. SICUTERI, Roberto. Lilith, a lua negra. Tradução Norma Telles e J. Adolpho Gordo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Tradução Sandra Regina Goulart de Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. SZYMBORSKA, Wislawa. Poemas / Wislawa Szymborska. Tradução Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.